Expandir o cultivo de cana, milho e soja em terras degradadas pode triplicar produção de bioenergia no Brasil
Estudo conduzido no Laboratório Nacional de Biorrenováveis aponta que conversão de pouco mais de 30% do total de 100 milhões de hectares de pastos degradados no país em lavouras de culturas energéticas pode ter impacto global na meta de transição energética estabelecida na COP30.


Elton Alisson, de Belém | Agência FAPESP – O Brasil possui 100 milhões de hectares (ha) de áreas de pasto degradados, equivalentes a quatro vezes a extensão territorial do Estado de São Paulo. Se pouco mais de 30% dessa área – 36 milhões de ha – fosse usada para expandir o plantio de cana-de-açúcar, milho e soja voltado, especificamente, para produção de bioenergia, seria possível gerar 6,8 exajoules (EJ) de energia por ano, equivalentes ao total de energia renovável produzida mundialmente hoje. O impacto ambiental seria neutro ou negativo, dependendo da região, porque o plantio dessas culturas energéticas nessas terras degradadas promoveria a fixação de carbono no solo.
As estimativas são de um estudo conduzido por pesquisadores do Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP).
Alguns dos resultados do trabalho, submetido para publicação, foram apresentados por Mário Murakami, diretor do LNBR, em uma mesa-redonda sobre a bioeconomia como impulsionadora da neoindustrialização e da transformação ecológica da economia brasileira, que aconteceu segunda-feira (17/11) em evento na Casa da Ciência, no Museu Emilio Goeldi, em Belém, paralelamente à 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30).
“A conversão dessas terras degradadas em lavouras de culturas energéticas pode ter impacto global ao contribuir muito para a transição energética do Brasil e do mundo para a bioeconomia e atingir a meta estabelecida nessa COP de quadruplicar a produção de biocombustíveis globalmente até 2035 [incluindo biocombustíveis líquidos, biogás e hidrogênio de baixa emissão]”, disse Murakami à Agência FAPESP.
Para chegar à estimativa de 100 milhões de hectares de terras degradadas no país, os pesquisadores utilizaram imagens obtidas por meio de mapeamento de satélite de alta resolução e definiram uma série de critérios, como não estarem situadas em áreas de preservação ecológica, próximas de floresta nativa, de nascente de água ou na transição do Cerrado com a Amazônia.
“Fomos bastante restritivos para garantir que essas áreas realmente não vão afetar o sistema hídrico, a disponibilidade de água e, muito menos, mata nativa, respeitando toda a legislação ambiental vigente”, afirmou Murakami.
“Por isso que, do total de 100 milhões de hectares de terras degradadas, somente 36 milhões foram considerados para o plantio de culturas para produção de bioenergia, e os 64 milhões de hectares restantes poderiam ser resguardados para reflorestamento”, explicou.
Além disso, foi levada em conta a logística para o cultivo dessas culturas energéticas nas terras degradadas de acordo com a localização, de modo que sejam integradas com as cadeias regionais produtivas regionais de bioenergia.
“Talvez em uma determinada região faça mais sentido cultivar milho e soja e em outra cana-de-açúcar. Isso tudo foi muito bem mapeado no trabalho com o intuito de indicar, especificamente, qual cultura se encaixa melhor em cada região do país, uma vez que cada uma tem suas especificidades de restrições, oportunidades e vantagens”, disse Murakami.
De acordo com o pesquisador, a área total de cultivo de cana-de-açúcar no Brasil hoje ocupa 9 milhões de hectares. A expansão do plantio dessa e de outras culturas energéticas nos 36 milhões de hectares de pastos degradados permitiria triplicar a produção de bioenergia no país.
“O Brasil tem o potencial de triplicar sua produção de bioenergia usando somente uma pequena parcela das terras degradadas e mantendo mais da metade para o reflorestamento.”
Vantagens comparativas
Na avaliação do pesquisador, o Brasil apresenta uma série de vantagens comparativas que tornam o país um concorrente imbatível em matéria de bioeconomia. Uma dessas vantagens é que mais de 90% da energia elétrica gerada é renovável, enquanto no resto do mundo a situação é oposta.
A disponibilidade dessa energia elétrica renovável permite gerar hidrogênio para produzir combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) – uma alternativa ao querosene de aviação tradicional, produzido a partir de fontes renováveis como óleos vegetais, gorduras animais, resíduos agrícolas e lixo – sem despacho fóssil, ou seja, com pegada de carbono zero, avaliou Murakami.
“O Brasil é o único país que consegue produzir hidrogênio de baixo carbono sem despacho fóssil, porque usa energia renovável para isso. O mundo inteiro vai depender de despacho fóssil adicional para produzir hidrogênio, que é um insumo central para produzir SAF”, comparou.
Outra vantagem do país é a disponibilidade de biomassa lignocelulósica. O país produz hoje mais de meio bilhão de toneladas desse insumo, que não compete com alimento. Desse total, 200 milhões de toneladas estão disponíveis na indústria, prontas para serem biotransformadas e convertidas em escala para produção de combustíveis, nutrição animal, cosméticos ou em qualquer molécula obtida hoje por meio do petróleo, a partir de energia renovável, apontou Murakami.
“Nenhum lugar no mundo tem essa biomassa cativa. Os Estados Unidos produzem muita biomassa, só que ela está disponível no solo das fazendas. No Brasil, essa biomassa já está na indústria, é limpa, abundante e de baixo custo. Isso permite reduzir em duas a três vezes o custo do produto final”, afirmou.
Além disso, o país já possui toda uma cadeia produtiva instalada baseada em culturas de bioenergia, como a da cana-de-açúcar, sublinhou Murakami.
“Esse é um grande diferencial e muda completamente o cenário. Não tem como competir com o Brasil em produção de bioenergia, em bioeconomia, com as vantagens comparativas que temos hoje.”
Alguns dos obstáculos, contudo, para o país avançar nessa área são as tecnologias, em grande parte importadas, para desconstruir a celulose da biomassa, que é extremamente recalcitrante à despolimerização biológica. Por isso, a missão do LNBR é codesenvolver e compartilhar riscos com a indústria nacional para desenvolver tecnologias que possibilitem a soberania tecnológica, explicou o pesquisador.
“Nosso papel não é competir com as indústrias, mas dar opções de escolha de tecnologias nacionais ou importadas para elas.”
Inspiração na biodiversidade
Para superar as barreiras tecnológicas para conversão da biomassa disponível no Brasil em produtos de interesse econômico, os pesquisadores do LNBR têm procurado alternativas na biodiversidade brasileira.
Por meio de trabalhos de bioprospecção, eles encontraram em amostras de solo recoberto por bagaço de cana-de-açúcar um novo filo bacteriano que permitiu mudar o paradigma do metabolismo da celulose, o polímero mais abundante da natureza.
Por meio de análises realizadas em uma das linhas de feixe do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron do CNPEM – acelerador circular de partículas carregadas (elétrons) que gera uma radiação, chamada de luz síncrotron, que permite investigar a composição e a estrutura da matéria na escala dos átomos e das moléculas –, eles conseguiram elucidar o mecanismo da enzima e aplicá-la em escala industrial, em reatores de 300 litros.
O trabalho foi relatado em artigo publicado em fevereiro deste ano na revista Nature (leia mais em: agencia.fapesp.br/53930).
“Conseguimos mostrar que essa enzima representa uma das maiores revoluções nos últimos 20 anos em termos de aplicação industrial, em comparação com outras descobertas de biocatalisadores, e que ela possibilita um ganho de mais de 20% [na conversão de biomassa]”, afirmou Murakami.
“Isso é um exemplo concreto do valor da biodiversidade e por que é importante a preservação de florestas”, avaliou.
O resultado foi integrado a uma plataforma de produção de coquetel enzimático, mantida pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e está disponível para os cientistas, que podem codesenvolver e melhorar a tecnologia.
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